A equação básica da vida: água, saneamento, saúde e futuro

Pesquisadora da Fiocruz explica como a ausência de saneamento define doenças, mortes e desigualdades no Brasil.

Falta de água tratada, mudanças climáticas e rápido envelhecimento populacional formam um cenário que exige ações urgentes de governo, escolas e comunidades. “Saneamento é saúde”: a afirmação, repetida tantas vezes nos debates públicos, ganha peso concreto quando observada nos territórios onde a ausência de infraestrutura ainda define quem adoece, quem falta à escola e quem morre mais cedo.

Em uma exposição contundente, a pesquisadora e médica Margareth Dalcolmo — com décadas de experiência em saúde pública — alerta para a relação direta entre saneamento básico, mudanças climáticas e o acelerado envelhecimento da população brasileira.



Com dados e vivências em comunidades em várias regiões do país, ela demonstra que acesso à água tratada e esgoto não é apenas um indicador social: é uma fronteira entre viver com dignidade ou permanecer vulnerável à doenças evitáveis. E reforça um pedido urgente aos educadores: transformar essa consciência sanitária em aprendizado cotidiano, porque as crianças de hoje serão responsáveis por cuidar de um país que envelhece rapidamente.

Confira, abaixo, alguns trechos da apresentação de Margareth Dalcomo

Saneamento é saúde: um conceito mensurável
Saneamento é saúde. Não é uma frase abstrata ou vaga. É algo mensurável. Mede-se o impacto em cada ação. E eu começaria — quase provocando todos vocês — perguntando: por que os países desenvolvidos não têm as doenças que nós ainda enfrentamos aqui? E o que está acontecendo hoje no planeta, diante das mudanças climáticas? Por que ainda há quem duvide disso?

Esses são impactos que transformam o que fazemos e determinam onde podemos intervir. E, sobretudo, devemos informar e conscientizar as crianças — elas compreendem esse assunto. Quando visitei Manaus e fui a duas áreas muito pobres e carentes, não visitei escolas. Fui diretamente às comunidades, às casas das pessoas, para ver qual era o impacto do saneamento.

Quando o saneamento chega: impactos imediatos
Duas perguntas são fundamentais. O que aconteceu no último ano depois que essa área, antes totalmente sem saneamento, passou a ser saneada? Quantas internações hospitalares de crianças por doenças diarreicas ocorreram? Nenhuma. Quantas faltas foram registradas nas escolas por doenças relacionadas à água? Muito poucas. Quantos idosos foram internados por enfermidades associadas à falta de saneamento, como diarreia ou pneumonia? Nenhum. Esses são os problemas que mais impactam e matam no Brasil.

E quem morre? Morrem os dois extremos da vida: crianças e idosos. E aqui entramos em outra questão: o impacto do saneamento e da saúde pública, que talvez alguns de vocês não percebam plenamente do ponto de vista demográfico — e é por isso que o assunto nos preocupa tanto.

Mudanças climáticas e o novo mapa das doenças
As mudanças climáticas são um fato. Elas trazem inundações, excesso de calor, instabilidade ambiental. Tudo isso altera o padrão das doenças. Queimadas, enchentes: todas geram doenças transmitidas por vetores.

O que isso significa? Significa doenças provocadas por mosquitos, que encontram na falta de saneamento o ambiente ideal para se proliferar. E por que ainda há mortes por leptospirose em algumas áreas da cidade do Rio, especialmente na Zona Oeste? Leptospirose é uma doença diretamente relacionada à qualidade da água. Não haveria leptospirose se essas áreas fossem saneadas. Onde moro, na Zona Sul, não há. Mas há onde eu trabalho.

No início da minha carreira, publiquei um estudo com 41 casos de pneumonia provocada por leptospirose na região de Jacarepaguá. Algumas pessoas morreram. Isso tem mais de 40 anos — e continua acontecendo. Aquela área precisa de intervenção. E ali há muitas escolas públicas, muitas escolas municipais.

Esses fatores precisam ser compreendidos por todos vocês que trabalham diretamente com crianças e adolescentes. É fundamental transmitir essa consciência social. As crianças precisam incorporar esse entendimento. A falta de saneamento não é apenas algo “feio”, como aquela camada de garrafas PET que se acumula nos rios e entope manilhas; é um problema que gera doenças, mortes e desigualdade.

A água tratada muda a vida
Saneamento influencia o absenteísmo escolar, a mortalidade infantil e dos idosos, a proliferação de mosquitos. Água tratada faz diferença. Recentemente, estive acompanhando equipes da Águas do Rio na Maré, esse grande cinturão de comunidades do Rio de Janeiro. Nós, médicos, não acreditamos apenas em discursos teóricos ou em papers — por mais bem escritos que sejam. Precisamos ver, medir o impacto. O impacto se mede assim: A água está tratada? Quantas pessoas adoeceram nos últimos meses naquela comunidade? Isso é mensurável. E esses resultados precisam chegar às escolas — porque as crianças entendem e sabem explicar isso.

O peso do envelhecimento acelerado
Outro dia, uma criança disse: “Eu não faltei à aula. Meu irmão não faltou. Meu avô está doente, mas agora conseguimos cuidar dele.” Tenho repetido isso. Vocês devem ter ouvido alguma entrevista minha recentemente em que fui criticada por ser “enfática demais” ao afirmar que o saneamento é indispensável. Mas eu repito: tem que ter saneamento.

Estamos envelhecendo rapidamente. E, no Brasil, a pior coisa que pode acontecer é envelhecer em uma comunidade pobre, sem saneamento, sem acesso a insumos mínimos. Conseguimos incorporar agora, no SUS, o fornecimento de fraldas geriátricas — e não é por acaso. Isso não é uma questão técnica apenas; é demográfica. O Brasil é o país que mais rapidamente envelhece no mundo. Já não temos uma pirâmide etária. Isso acabou. E não há como reverter esse padrão. Por isso o saneamento é tão essencial.

A realidade de quem vai precisar de cuidados
As pessoas vão envelhecer dentro de suas casas, muitas vezes acamadas. E, para cuidá-las, a primeira condição é ter água potável, ter água saneada, ter condições mínimas de higiene. Hoje, no Brasil, já há mais pessoas com 60 anos ou mais do que pessoas com menos de 15. É um dado que altera completamente qualquer política de saúde.

Nossa população crescerá até 2038. Depois disso, só diminuirá. Chegaremos a cerca de 229 ou 230 milhões de habitantes e, então, começaremos a declinar. Quem aumentará muito serão os maiores de 80 anos. Já temos 6,5 milhões de pessoas nessa faixa. É muita gente — e não apenas nas classes mais ricas; é um fenômeno que atravessa todas as classes sociais.

Por que esses dados importam? Não é por formalidade científica. É porque têm impacto direto na saúde. Precisamos vacinar — muito. Faço parte do grupo assessor do Ministério da Saúde no Programa Nacional de Imunizações. Nossa prioridade é assegurar a cobertura vacinal dos recém-nascidos, porque essa geração — com quem vocês, professores, trabalham — precisa crescer saudável. Precisamos deles para cuidar de nós no futuro.

Aprender a medir impacto: um papel das escolas
E é preciso medir impacto. As crianças podem aprender a fazer isso. Podem perguntar: Quantas pessoas adoeceram nos últimos seis meses na minha comunidade? Quantas crianças foram internadas por doenças diarreicas? Quantos casos de dengue, chikungunya ou zika houve? Quantas internações em idosos?

Por isso costumo dizer que é preciso glamurizar o saneamento. Glamurizar o esgoto, a limpeza dos rios. Isso tem impacto enorme para nós, médicos. Não queremos apenas publicar artigos. Queremos voltar aqui daqui a um ano e dizer: “Houve impacto real. Houve redução da mortalidade infantil. Houve menos internações por doenças transmitidas por vetores.”

Saúde e saneamento são irmãos siameses. Não se fala de um sem falar do outro. E é muito constrangedor que, às portas de 2026, em uma cidade populosa como o Rio de Janeiro, ainda convivamos com doenças transmitidas por vetores por falta de saneamento. A Baía de Guanabara é simbólica e representa um grande desafio. Mas, sanitariamente, o mais importante é sanear as áreas densamente povoadas, onde vivem pessoas de todas as idades e onde o impacto é mensurável.

O Brasil teve, nos últimos oito ou nove anos, oito grandes manifestações das mudanças climáticas, com quase mil mortes registradas — todas evitáveis. Se houvesse saneamento adequado e políticas preventivas nessas regiões, o impacto teria sido muito menor.

O quarteto que define o futuro: saúde, saneamento, clima e longevidade
Saúde, saneamento, mudança climática e longevidade: esse quarteto deve ser incorporado por todos vocês, professores, da forma mais criativa possível. Estamos envelhecendo, e isso exige atenção redobrada. Nossa preocupação hoje se divide em duas frentes: garantir alta cobertura vacinal das crianças, para que cresçam saudáveis e possam, no futuro próximo, cuidar das gerações mais velhas e incorporar vacinas para proteger pessoas acima de 60 anos, a faixa da população que mais cresce.

Um chamado às escolas e às famílias
Por isso, peço — com convicção — que falem desse assunto nas escolas, conversem com os pais, responsáveis. Não podemos perder algo tão precioso que conquistamos no Brasil: a confiança das famílias na saúde pública. Elas sabem, dentro de suas próprias casas, o valor dessa proteção.

E nós, profissionais de saúde, precisamos de vocês. Sozinhos, somos “apenas mais um médico” ou “a doutora da Fiocruz repetindo o mesmo tema”. Por isso, conto com vocês para multiplicar essa consciência.

0 0 votos
Avaliação
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais recentes
mais antigos Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Cadastre-se e receba nossa news

Você pode gostar de: