As literaturas africanas vêm conquistando cada vez mais espaço nos debates acadêmicos e culturais ao redor do mundo — e também no Brasil. Mas ainda são, para muitos, um território desconhecido. Para o jornalista e professor Alexandre dos Santos, essa invisibilidade tem raízes profundas na forma como o continente africano foi – e ainda é – representado nos currículos escolares, na mídia e no imaginário coletivo.
Por que falar em literaturas africanas no plural?
“Prefiro falar em literaturas africanas, no plural”, destaca Alexandre, doutorando em Relações Internacionais pela PUC-Rio e coordenador do Lepecad – Laboratório de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre o Continente Africano e as Afrodiásporas, da mesma instituição. Para ele, cada país africano carrega em sua literatura as marcas de histórias singulares e complexas — da ancestralidade às guerras pela independência, das tradições orais à crítica ao legado colonial.
Temas recorrentes e impacto das literaturas africanas
Na entrevista a seguir, concedida à revistapontocom, Alexandre fala sobre os principais autores do continente, os temas mais recorrentes nas produções contemporâneas, o papel das literaturas africanas na desconstrução de estereótipos e o que as escolas brasileiras podem e devem fazer para ampliar o contato de crianças e jovens com essas obras.
Ferramentas de empatia e transformação
Mais do que fontes de conhecimento, para ele, essas literaturas são também ferramentas de empatia, reflexão e transformação: “Elas lidam com as mesmas encruzilhadas morais e éticas que nós enfrentamos no mundo inteiro”.
Alexandre é responsável pelo canal no youtube #ConexãoÁfrica/África em Livros e pelo Clube de Leitura África em Livros, criado em 2021 e dedicado exclusivamente à leitura e discussão de obras publicadas por autoras/es do continente africano. Especialista em história e geopolítica do continente africano, é um dos autores do livro “África no mundo contemporâneo” (Editora Garamond, 2014).
Confira a entrevista completa com Alexandre dos Santos

revistapontocom – Como você define a literatura africana? Há características comuns entre os países lusófonos?
Alexandre dos Santos – Prefiro usar essa expressão no plural: literaturas africanas. Historicamente, há uma tendência a se referir ao continente africano como se fosse um bloco único, uma coisa só ou um país. E isso nos leva a pensar a África como se tivesse apenas uma característica homogênea. Se não pensamos assim sobre o Brasil — quando falamos das diferenças entre um gaúcho, um paraense, um baiano, um carioca e um mato-grossense — por que imaginar o continente africano como um bloco homogêneo? Não faz sentido. Se as literaturas regionais brasileiras são bem diferentes entre si, então defendo que o mesmo seja pensado quando olhamos para a África. São 54 países, e cada um deles tem uma história riquíssima que se reflete em uma infinidade de tradições — muitas delas dialogam entre si —, misturando culturas ancestrais e histórias de ocupações coloniais recentes. Por isso, prefiro me referir a literaturas africanas. Se há um ponto em comum entre todos esses universos, talvez seja aquilo que dá características plurais a essas literaturas: as relações — muitas vezes conflituosas — entre o ancestral e o moderno, as encruzilhadas morais enfrentadas pela humanidade, o espaço e a influência das tradições de oralidade nos textos escritos, a apresentação de uma narrativa afrocentrada, o confronto — ou, em muitos casos, a negociação — com o legado colonial, a incorporação de palavras ou expressões das línguas locais. Entre os países lusófonos, as experiências literárias locais começam invariavelmente com a produção da poesia de protesto, que se torna expressão revolucionária durante as guerras de independência, no início da década de 1960. Assim, memórias de conflitos, lutas anticoloniais e suas consequências, a construção de nações formadas por diversos povos, o resgate de histórias apagadas pelas ocupações coloniais, as crônicas sociais e, até mesmo, a decepção com os Estados pós-independência são alguns dos temas recorrentes na literatura da África Lusófona.
revistapontocom – Quais são os principais autores e obras que marcam essas literaturas?
Alexandre dos Santos – A lista é enorme e vou acabar sendo injusto com alguém que, invariavelmente, vou esquecer de citar. Por isso, vou me ater aos que abriram caminho para todos os outros que vieram depois. Da Nigéria, temos: Chinua Achebe (a trilogia “O Mundo se despedaça”; “A Paz Dura Pouco” e “A flecha de Deus” foi publicada aqui no Brasil), Flora Nwapa (que tem “Efuru” e “Basta um”, lançados no Brasil), e o prêmio Nobel Wole Soyinka, que, depois de quase 30 anos, teve, ao menos duas obras lançadas no Brasil “Aké – memórias da infância” e “Mito, literatura e o mundo africano”. De Moçambique podemos destacar: José Craveirinha (sem publicação brasileira), Ungulani Ba ka Khosa (tem várias obras publicadas por aqui) e Noémia de Souza (poemas reunidos e lançados em uma edição lindíssima no país). De São Tomé, Alda do Espírito Santo (sem publicação no Brasil). Do Quênia: Ngugi wa Thiong’o (cujo clássico “Um grão de trigo” foi publicado por aqui) e Grace Ogot (nenhuma publicação). De Mali, temos s Amadou Ampâté Bâ (só temos um livro dele em português: “Amkoullel, o menino fula”). De Gana, Ama Ata Aidoo (nenhum livro lançado por aqui). De Senegal: Mariama Bâ (que tem o clássico “Uma carta tão longa” traduzida para o português). Há o angolano Luandino Vieira (que tem vários livros lançados por aqui). De Cabo Verde, Manoel Lopes e Baltasar Lopes da Silva, cujos títulos foram publicados aqui nos anos 1980, mas as obras já saíram de catálogo. Há o somali Nuruddin Farah, que teve dois livros com edições brasileiras: “Mapas” e “De uma costela torta”, depois de muitos anos de atraso. Do Egito: Nawal El Saadawi (obra vem sendo publicada), bem como o Prêmio Nobel Naguib Mahfouz. Há os guineenses Abdulai Sila (sua obra “A tragédia final” foi lançada por aqui) e Tony Tcheka (sem obra publicada). Há a sul-africana Olive Schreiner e o camaronês Mongo Beti, sem obras publicadas. No fim das contas, quem perde com as edições não publicadas no Brasil somos nós.
revistapontocom – É possível identificar os temas mais recorrentes nas literaturas africanas contemporâneas?
Alexandre dos Santos – Em geral, elas propõem um resgate da história apagada por muitas das ocupações coloniais, apresentando uma narrativa afro centrada e alternativa à história contada pelos europeus como o relato – pelo lado de dentro – dos movimentos e guerras que levaram às independências, a incorporação de expressões e palavras locais aos idioma imposto e deixado como língua franca pelos ocupantes coloniais, questões como as situações pós-guerras civis e reconciliação, construção das nações, migrações e relações dos imigrantes fora do continente africano, questões raciais, de gênero e sexualidade em sociedades em transição, críticas a muitos dos governos.
revistapontocom – A produção literária africana tem sido usada por seus autores em que sentido?
Alexandre dos Santos – Assim como em qualquer região do planeta, muitos autores do continente africano usam a produção literária para oferecer um outro ponto de vista para momentos-chave da história moderna (neocolonialismo, primeira e segunda guerras mundiais, por exemplo), como veículos para crítica política, como crônica social, como laboratório estético.
revistapontocom – Neste contexto, as literaturas africanas podem ser vistas como uma forma de soft power? Como influenciam a percepção internacional sobre os países africanos?
Alexandre dos Santos – Sim, mesmo que essa não seja a intenção original de muitos dos governos do continente africano. É um soft power que talvez tenha mais a ver com a mudança de perspectiva de um continente como um todo do que o uso proposital dos instrumentos estéticos – no caso o livro – por um país como instrumento de aproximação e influência. Festivais como a Bienal de Dakar (Senegal), as Feiras Internacionais do Livro que acontecem em várias capitais do continente africano, assim como os grandes festivais de quadrinhos em Nairóbi (Quênia) e Lagos (Nigéria) transformam esses países em vitrines da literatura. Quando autores como David Diop (Senegal), Nadifa Mohamed (Somália), Maaza Mengiste (Etiópia), Damon Galgut (África do Sul), Mohamed Mbougar Sarr (Senegal), Chigozie Obioma (Nigéria) vencem ou chegam a ser finalistas de algum grande prêmio literário internacional, você tem a oportunidade de “reposicionar” esses países no imaginário universal. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os autores da África Lusófona que venceram o Prêmio Camões – o mais importante em língua portuguesa – José Craveirinha (Moçambique), Germano Almeida (Cabo Verde), Arménio Vieira (Cabo Verde), Pepetela (Angola), Mia Couto (Moçambique), Luandino Vieira (Angola) e Paulina Chiziane (Moçambique). Alguns deles passaram a ser mais conhecidos e mais publicados no Brasil. O mesmo com autores e autoras que venceram o Nobel de Literatura: Wole Soyinka (Nigéria), Naguib Mahfouz (Egito), Nadine Gordimer (África do Sul), J.M.Coetzee (África do Sul) e Adbulrazak Gurnah (Tanzânia) – e eu vou incluir aqui o Camus (Argélia) e o Le Clézio (Ilhas Maurício). O fato de eles terem recebido o maior reconhecimento literário do mundo, voltou os olhos para as suas obras, suas narrativas e seus países. Quando Chimamanda Ngozi Adichie (Nigéria), Mia Couto, Agualusa (Angola), Pepetela e Ondjaki (Angola) vêm ao Brasil para conversar com seus leitores, nós conseguimos ter contato com outros histórias e narrativas sobre o continente africano que não apenas a história única (que a Chimamanda tanto critica) e conseguimos vislumbrar uma África muito mais próxima de nós, brasileiros, do que aquela cheia de estigmas e dos estereótipos da pobreza, miséria, guerra e corrupção que o noticiário e os livros de história nos apresentam.
revistapontocom – Como os escritores africanos representam o ocidente em suas obras? E como o ocidente representa a África na literatura e no imaginário internacional? São visões contraditórias?
Alexandre dos Santos – Quem melhor nos explica sobre essas construções de estereótipos e imagéticas é Edward Said, em “Cultura e Imperialismo”. Entre o olhar crítico e desmistificador, o ocidente é, muitas vezes, apresentado e analisado como um lugar gerador de fascínio. Quase um espelho rachado. Um espelho onde os africanos se veem distorcidos. E o fascínio vem da forma como o espelho se apresenta até hoje como o mediador da imagem do que é real. Fonte de atração e repulsa. Obras clássicas como Tempo de “Migrar para o Norte”, de Tayeb Salih (Sudão), até mais recentes como “Americanah”, de Chimamanda, ou “O Ventre do Atlântico”, de Fatou Diome (Senegal), são alguns dos exemplos de como os escritores lidam com esses sentimentos complexos e paradoxais que refletem até hoje relações sociais e políticas assimétricas.
revistapontocom – As literaturas africanas, portanto, vêm ajudando a desconstruir estereótipos nas relações entre os países, entre o real e o imaginário?
Alexandre dos Santos – Sim. Ao nomear assuntos e situações, ao amplificar vozes que foram caladas e invisibilizadas no passado, ao apresentar experiências plurais e pluriversos, escritores e escritoras do continente africano se juntar ao fluxo de desconstrução de estigmas e estereótipos de que se refletem em uma África de história única sendo apresentada pela mídia e (ainda) por muitos livros didáticos no Brasil.
revistapontocom – Por que parece existir, no senso comum, um enorme desconhecimento sobre as literaturas africanas no Brasil?
Alexandre dos Santos – Porque o continente africano nunca foi tratado com o devido respeito e a devida importância pelos currículos escolares brasileiros. A aprovação da lei 10.639, em 2003, vem mudando essa realidade. De maneira muito lenta e gradual, mas nós já tivemos avanços significativos nessas últimas duas décadas. á temos muitos títulos didáticos lançados e que recentralizam a história do continente africano e dos povos que viram para as Américas, bem como suas imensas contribuições para a nossa cultura, sociedade e política. O questionamento do eurocentrismo dos currículos escolares também é peça fundamental nesse processo, que nos leva a questionar a nossa própria história e revalorizar não apenas as contribuições africanas, mas das populações originárias também.
revistapontocom – O que as escolas podem fazer neste sentido?
Alexandre dos Santos – Adotar livros didáticos que realmente tenham uma proposta de inserção da história do continente africano paralela e complementar à história do Brasil, a adoção de literaturas africanas – e não apenas as adotadas pelos vestibulares, a troca de experiências com as literaturas africanos, trabalhar projetos interdisciplinares que integrem a história e as literaturas africanas aos assuntos das matérias que estejam sendo revisadas ou ensinadas. A lista depende da imaginação e da vontade de cada um.
revistapontocom – O que você vem descobrindo sobre o tema ao longo de tantos anos de estudo?
Alexandre dos Santos – Que as literaturas africanas não são literaturas exóticas a serem descobertas como se o leitor estivesse em um safári. Muito pelo contrário, as literaturas africanas nos propõem visões complementares às nossas – em muitos casos, muito mais próximas do nosso modo de perceber o mundo do que os escritores europeus e estadunidenses – para todas as encruzilhadas pelas quais passamos como seres humanos. As literaturas produzidas no continente africano são, ao mesmo tempo, diferentes e as mesmas de qualquer literatura. São as mesmas porque elas lidam com as mesmas questões morais e éticas do passado e do presente. São distintas porque apresentam um ponto de vista própria de cada país, cada história, cada caldeirão de culturas e cada cosmogonia… seja pelo silêncio ou pela polifonia. Mas uma coisa eu tenho certeza, mesmo depois de duas décadas de experiências maravilhosas com as literaturas africanas, eu mal passei das primeiras páginas.