Por Marcus Tavares
Hoje, celebra-se o Dia Nacional dos Povos Indígenas. Data que merece ser comemorada, mas que também deveria promover reflexões e (re)aproximações. É exatamente o que defende Inimá Krenak, com quem a revistapontocom teve a oportunidade de entrevistar. Cientista social, gestora ambiental e mulher indígena com mais de 20 anos de experiência em projetos e parcerias com comunidades tradicionais, Inimá de forma objetiva, simples e didática explica o quanto as tradições indígenas têm a ensinar ao mundo, embora a escuta continua sendo ignorada.
“Ainda é possível aprender se houver humildade verdadeira para escutar. Não estamos pedindo espaço para ensinar. Estamos vivendo, lutando e mantendo nossas verdades, mesmo diante de tanta violência. O que oferecemos ao mundo não é um discurso bonito: é um modo de vida em que o bem comum, o território e o equilíbrio com a natureza são centrais”, destaca Inimá.
Na entrevista, Inimá fala sobre a relação dos povos com os rios, a importância ancestral para a preservação do planeta e as graves consequências das emergências climáticas. “Os povos indígenas já mostraram, por séculos, que é possível viver com abundância sem destruir a terra. Nossos territórios são as regiões mais preservadas do planeta e isso não é coincidência. Cada vez mais, a ciência reconhece que o conhecimento tradicional indígena é essencial para frear o colapso ambiental. Mas essa valorização só será verdadeira se vier acompanhada de respeito à autonomia dos povos, demarcação dos territórios e apoio direto às nossas iniciativas”, reitera.
Inimá atua, desde 2019, como Gestora de Programas no Fundo Casa Socioambiental, sendo responsável pela implementação de políticas e estratégias de doações para grupos de base. Durante oito anos, integrou a diretoria do Instituto das Tradições Indígenas (IDETI). Atualmente, é membro do Conselho do Núcleo de Cultura Indígena (NCI). Na bagagem, dois livros: ‘Aunakî Kuwamutü’ com o povo Mehinaku e ‘Histórias do começo e do fim do mundo: O contato do povo Paiter Suruí’, pela Editora Ikore.
Acompanhe a entrevista:
revistapontocom – De que forma as tradições indígenas brasileiras se relacionam com o meio ambiente?
Inimá Krenak – Para nós, povos indígenas, o meio ambiente não é um recurso a ser explorado, mas, sim, parte de um sistema vivo do qual fazemos parte. A floresta, a terra, os ventos, os rios, os animais e os humanos estão conectados numa rede de reciprocidade. Não se trata de “preservar” a natureza como algo externo a nós, trata-se de viver com ela em harmonia, com responsabilidade e respeito. Os modos de vida indígenas carregam essa visão integrada e ancestral. Muitos de nossos rituais, narrativas e práticas de cuidado nascem da observação dos ciclos da natureza, e nossa existência se organiza a partir deles.
revistapontocom – De que forma as tradições indígenas brasileiras se relacionam, especificamente, com os rios?
Inimá Krenak – Os rios são mais do que caminhos de água: são caminhos de memória, espiritualidade e vida. O rio é um ser que respira, sente, comunica e guarda histórias. Para nós, povo Krenak, o rio Doce se chama Watú e é considerado nosso avô. Ele não é apenas uma paisagem do território. É uma presença sagrada, um parente mais velho que nos ensina, protege e alimenta. Quando o Watú foi violentado pela lama da mineração, sentimos como se tivessem nos arrancado algo essencial. Não foi só um dano ambiental. Foi um trauma espiritual, uma ferida profunda no nosso corpo coletivo. A destruição de um rio, portanto, não é só uma perda ecológica é uma ruptura cultural e espiritual.
revistapontocom – No processo de aculturação, aprendemos alguma coisa com as tradições indígenas e suas relações com o meio ambiente? Deveríamos ter aprendido?
Inimá Krenak – A sociedade envolvente, de forma geral, não quis aprender com os povos indígenas. E isso não foi por falta de oportunidade. Ao longo da história, houve e ainda há uma recusa sistemática em reconhecer nossos saberes como legítimos, como ciência, como conhecimento ancestral profundamente enraizado na relação com a terra. As políticas de assimilação, a forma como a educação foi estruturada, os meios de comunicação… tudo contribuiu para invisibilizar ou distorcer nossa sabedoria, nos tratando como folclore ou como passado. Mas nossos saberes estão vivos e seguem vivos porque resistimos. Ainda é possível aprender se houver humildade verdadeira para escutar. Não estamos pedindo espaço para ensinar. Estamos vivendo, lutando e mantendo nossas verdades, mesmo diante de tanta violência. O que oferecemos ao mundo não é um discurso bonito: é um modo de vida em que o bem comum, o território e o equilíbrio com a natureza são centrais. Talvez a pergunta mais urgente não seja se “deveriam ter aprendido”, mas se estão prontos para ouvir agora antes que seja tarde.
revistapontocom – Quando o mundo enfrenta as consequências das mudanças/emergências climáticas, há (ou deveria haver) uma reaproximação e (re)valorização das tradições indígenas?
Inimá Krenak – Sim, e essa reconexão é urgente. O modelo de desenvolvimento que causou a crise climática está esgotado. Os povos indígenas já mostraram, por séculos, que é possível viver com abundância sem destruir a terra. Nossos territórios são as regiões mais preservadas do planeta e isso não é coincidência. Cada vez mais, a ciência reconhece que o conhecimento tradicional indígena é essencial para frear o colapso ambiental. Mas essa valorização só será verdadeira se vier acompanhada de respeito à autonomia dos povos, demarcação dos territórios e apoio direto às nossas iniciativas.
revistapontocom – Tradições que sempre cuidaram do meio ambiente sofrem as consequências de um mundo que ‘pouco’ se preocupou com ele. Parece ser meio injusto, não?
Inimá Krenak – Sim, é profundamente injusto. Os povos indígenas estão entre os que menos contribuíram para as causas da crise climática, mas estão entre os que mais sofrem seus efeitos. Perdem acesso à água limpa, enfrentam queimadas, secas, inundações e a destruição de seus modos de vida. Essa é uma expressão clara do que chamamos de racismo ambiental. A injustiça climática não é só ecológica, ela tem cor, tem território e tem história. Mas, mesmo diante disso, os povos indígenas seguem resistindo, criando caminhos de cura para todos.
revistapontocom – Estudos dizem que, se não fossem as tradições indígenas, as condições climáticas estariam ainda piores. É verdade?
Inimá Krenak – Sim. E essa afirmação pode ser embasada por diversos estudos científicos. Os territórios indígenas que restaram sob cuidados dos nossos povos, são os espaços mais preservados do planeta, isso porque há uma relação de cuidado e corresponsabilidade com a terra. Mesmo diante de tantas tentativas de apagamento, os povos indígenas continuam protegendo florestas, rios e biodiversidade com o que têm, com seus corpos, sua espiritualidade, sua organização comunitária. Proteger os direitos dos povos indígenas é proteger o futuro do planeta. Sem os povos indígenas, a crise climática certamente já teria ultrapassado limites ainda mais graves.
revistapontocom – De que forma os programas do Fundo Casa Socioambiental vêm ajudando nesse contexto de tradições indígenas e mudanças climáticas?
Inimá Krenak – O Fundo Casa atua há duas décadas no apoio direto a grupos e organizações comunitárias. Com os povos indígenas, isso significa fortalecer ações em defesa dos territórios, da autonomia e dos saberes tradicionais. Apoiamos projetos de fortalecimento da governança indígena, proteção de nascentes e rios, reflorestamento, produção de alimentos adaptados às mudanças do clima, enfrentamento a emergências como queimadas e alagamentos, projetos de educação indígena baseados nos próprios saberes. Sempre com escuta atenta, respeito às formas próprias de organização e valorização da autonomia. Acreditamos que apoiar as soluções indígenas é apoiar o Bem Viver. E o Bem Viver não é um sonho distante ele está sendo tecido agora, por muitas mãos, nos territórios que resistem